Cultura Inca: dois museus com algo em comum

Viajar pela América do Sul é ter contato com a cultura inca ao longo de quase todo seu percurso, seja ao cruzar estradas ou trilhas incas, seja ao visitar antigas ruínas ou museus contendo parte de sua história.

Os incas, filhos do sol, seriam descendentes de diversos povos quéchuas. A incorporação de outros povos se deu através de dominações tanto pacíficas, quanto violentas. O império inca era o maior da América pré-colombiana e, possivelmente, do mundo até meados do século XVI, estendendo-se do sul da Colômbia até o noroeste da Argentina.

Segundo o que aprendemos com os nativos, apenas o imperador era chamado de Inca e havia uma distinção muito grande entre a cultura da elite e a cultura dos povos conquistados.

A língua oficial falada era o quéchua, não possuía forma escrita e variava dentro do território Inca. Até hoje se fala quéchua em muitas regiões do Peru e Bolívia.

Seu declínio se deu após a chegada e colonização pelos espanhóis, no século XVI. Muitos detalhes sobre esta civilização foram perdidos ou destruídos pelos espanhóis.

Muito do que sabemos sobre a cultura inca foi passado, e repassado, por exploradores e historiadores europeus da época, além de achados arqueológicos como aqueles dispostos no Museo Santuarios Andinos em Arequipa-Peru e no Museo de Arqueología de Alta Montaña em Salta-Argentina, ambos temas deste post.

Por que os escolhi para comemorar a Museum Week, que em 2020 ocorre entre os dias 11 e 17 de maio? Porque ambos contam em seu acervo com múmias de humanos, super preservadas pelo gelo, que foram sacrificados e ofertados aos deuses. A sensação de vê-las é diferente de tudo o que já experimentei na vida.

Capacochas

Os rituais envolvendo sacrifícios humanos às divindades eram conhecidos como “capacochas”.

Os incas acreditavam que os deuses influenciavam a ocorrência de fenômenos naturais, como terremotos, erupções vulcânicas, inundações e secas. Por este motivo crianças eram enviadas como mensageiros aos deuses para que tudo voltasse ao normal.

Rosto de Viracocha, deus criador segundo a cultura inca, em Ollantaytambo, Peru.

Igualmente havia as capacochas imperiais que eram realizadas em épocas de guerra, após o nascimento do herdeiro do trono ou quando um governante era acometido por doença ou morte.

Por que crianças?

Na cultura inca as crianças eram consideradas puras e intocadas. Eles acreditavam que durante os sacrifícios as crianças se tornariam um intermédio entre deuses e pessoas, acalmando e convencendo os primeiros a realizarem suas preces.

As meninas eram entregues ainda muito jovens por suas famílias para serem criadas nas Acllahuasi, ou “casa das mulheres escolhidas”, podendo ser sacrificadas ainda crianças ou adolescentes. Em contrapartida, os meninos eram sempre sacrificados enquanto crianças para que não perdessem sua pureza na puberdade.

No entanto, ainda não se sabe quais eram os critérios adotados na seleção daqueles que seriam oferecidos aos deuses. Possivelmente deveriam ser dotados de algumas características excepcionais, como beleza ou ancestralidade.

Para as famílias era uma honra estar envolvidas nestes rituais e não viam como algo negativo.

Como eram os rituais?

As festividades, muitas iniciadas em Cusco, capital do império Inca, eram seguidas por peregrinação de dias ou até meses rumo ao local onde seriam realizados os sacrifícios e oferendas aos deuses.

Os sacríficos eram uma forma de mostrar respeito e agradar aos deuses.

Os sacerdotes incas costumavam escolher locais altos e com grande probabilidade de queda de raios, pois esta seria uma maneira de saber que a oferta havia sido aceita pelos deuses!

Os escolhidos eram embriagados com chicha, uma bebida fabricada a partir da fermentação do milho, e com plantas alucinógenas, como a folha de coca, possivelmente para minimizar a dor e fazê-los dormir. A oferta era feita por estrangulamento, com um golpe na cabeça ou enterrando as vítimas vivas. Junto a seus corpos depositavam túnicas em lã de alpacas, brinquedos em cerâmicas ou confeccionados em metal, alimentos, dentre outros, que seriam utilizados durante a longa viagem ao mundo superior dos incas.

Museo Santuarios Andinos (MUSA)

O museu se encontra no interior da Casa de la Cultura, localizada no centro histórico da belíssima Arequipa.

Inesperadamente ele ficava em frente ao nosso hotel!

O museu é pequenininho mas cheio de história. Apesar da visitação poder ser realizada sem guia, recomendo fortemente a visita guiada para que você possa entender melhor a história de cada objeto ali exposto. É possível também levar um guia externo. Os guias são voluntários. Funciona como os famosos Free Walking Tours que, ao final, você dá uma gorjeta caso queira e no valor que achar justo.

O foco deste museu está nos rituais aos Apus, montanhas sagradas, sendo grande parte dos objetos ali expostos provenientes destas oferendas.

A visita se inicia com um vídeo contando um pouco sobre os rituais da cultura inca, as recentes descobertas e pesquisas.

Posteriormente, visitamos as 8 salas de exposições. O museu conta com diversos objetos da cultura inca, alguns com mais de 550 anos, como cerâmicas, trabalhos em metal e tecidos. Infelizmente grande parte das peças em ouro e prata foi derretida pelos colonizadores espanhóis…

As múmias

Embora o museu todo seja interessante, o ponto principal deste é a “Juanita, la niña de los hielos”. A múmia de Juanita foi encontrado a cerca de 6312 metros de altitude, no topo do vulcão Ampato, onde a temperatura média é de -20°C, após uma erupção de seu vizinho Sabancaya em 1995 que a expôs ao mundo.

Juanita é considerada um dos 10 descobrimentos arqueológicos mais importantes do século XX e foi declarada Patrimônio Cultural do Peru.

Acredita-se que ela tenha sido oferecida em um ritual ao Apu Ampato, o deus dos tremores, pelo imperador Inca Yupanki por volta de 1450 quando o vulcão Misti entrou em erupção, para pedir a Viracocha, o deus criador, o fim das atividades vulcânicas na região. Ela teria sido escolhida por conta de sua beleza e boa saúde.

Vista do nosso quarto para a Catedral de Arequipa e do vulcão Misti!

Devido às baixíssimas temperaturas, seu corpo foi extremamente preservado, ao passo que até mesmo seus órgãos internos e conteúdo estomacal! Desta forma, foi possível realizar um estudo completo, desde do que ela se alimentou antes de ser sacrificada, até a causa da sua morte. A idade estimada da Juanita é entre 12 e 14 anos e sua morte foi causada por um forte golpe na cabeça que fraturou seu crânio, causando hemorragia interna.

Também foram preservadas suas vestimentas e todos os objetos que foram oferendados juntamente ao seu corpo. Pela qualidade destas peças, presume-se que era de família nobre.

Entretanto, quando fomos, outra múmia estava em exposição: Sarita. Sua idade estimada é entre 15 e 17 anos e ela foi encontrada no Nevado Sara Sara em 1996. Também foi oferecida aos deuses há mais de 500 anos.

Informações importantes

Não é permitido tirar fotos ou filmar no interior do museu. Tampouco é permitido entrar com mochilas e celulares. Todos os pertences pessoais devem ser deixados nos armários na recepção.

Aconselho levar um casaquinho, pois o museu é bem frio, para melhor conservação das peças expostas.

Reserve entre 1h e 1h30 para a visita guiada.

Juanita fica em exposição de 1º de maio a 31 de dezembro. No restante do ano fica exposta outra múmia congelada, a da Sarita. Este rodízio é feito para conservação e estudos.

Para informações atualizadas de horário de funcionamento e valor do ingresso, acesse o site oficial.

Museo de Arqueología de Alta Montaña

O MAAM localiza-se no coração de Salta, na Plaza 9 de Julio. Assim como o museu anterior, também é pequeno e cheio de informações super interessantes sobre a cultura inca.

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O museu tem como objetivo principal a conservação, difusão e investigação dos achados arqueológicos no vulcão Llullaillaco, localizado próximo à fronteira com o Chile. No alto de seus 6739 metros, em 1999, foram encontradas três crianças, os “Niños de Llullaillaco”, e mais de 150 objetos que foram deixados junto aos seus corpos, datando mais de 500 anos!

Surpreendentemente, não tirei nem uma fotinho sequer dele…

Estes objetos compunham seus respectivos “ajuares”, uma espécie de enxoval com oferendas. Assim como as três múmias, consideradas a mais bem preservadas do mundo, os objetos também estavam intactos e ajudaram os pesquisadores a entender como eram os rituais na América Pré-Colombiana.

O museu foi criado em 2007 especialmente para exibi-los. Da mesma forma que no MUSA, há rotatividade na exposição das múmias para que possam ser preservadas e estudadas.

Durante a visita conhecemos com mais detalhe como se deu a descoberta das múmias e a história de cada criança com base nos estudos forenses e arqueológicos. Fotos e vídeos mostram a história e cultura do povo Inca, além da exposição de alguns dos objetos encontrados nas tumbas das crianças. Ao final há uma sala escura e fria onde encontra-se uma das múmias. Para vê-la é necessário apertar um botão para acender a luz. A decisão fica a seu cargo de ver ou não.

As múmias

As múmias estão conservadas em cápsulas que modificam a atmosfera reduzindo o conteúdo de oxigênio, mantendo a temperatura estável de -20˚C e uma iluminação filtrada em UV e IR que garantem sua correta preservação.

As crianças ficaram conhecidas como La Doncella, El Niño e La Niña del Rayo. Testes de DNA revelaram que elas não eram parentes e tomografias mostraram que estavam bem nutridas, não tinham ossos quebrados ou outros ferimentos e estavam adormecidas quando morreram.

La Doncella – A Donzela

Foi esta que vimos na nossa visita. Sua idade estimada é de 15 anos. Acredita-se que era uma aclla ou “virgem do sol”, educada na Acllahuasi “Casa das mulheres escolhidas”. Testes mostraram que aparentemente tinha sinusite, bem como uma doença pulmonar chamada bronquiolite obliterante, possivelmente resultado de uma infecção.

El Niño – O menino

Sua idade estimada é de 7 anos. Suas vestes, adornos assim como o crânio levemente alongado, criado deliberadamente com o enrolamento de tecidos na cabeça, são indicativos de status social elevado, possivelmente até de realeza.

La Niña del Rayo – A Menina do Raio

Presume-se que tinha entre 6 e 7 anos. Em algum momento após seu enterro foi atingida por um raio que queimou parte de seu rosto, pescoço, ombros e braços, assim como parte de suas roupas e objetos que a acompanhavam. Igualmente ao El Niño, seu crânio foi intencionalmente modificado, tendo uma forma cônica, indicativo do seu alto status social.

Informações importantes

Não é permitido tirar fotos ou filmar no interior do museu.

Aconselho levar um casaquinho, pois a temperatura no museu é baixa para melhor conservação das peças expostas.

Reserve entre 1h-1h30 para o passeio. Há visitas guiadas às 11 e 17h. Infelizmente perdemos o horário e tivemos que fazer a visita sozinhos.

Para informações atualizadas de horário de funcionamento e valor do ingresso, acesse o site oficial.

Blogagem Coletiva

Este texto faz parte da blogagem coletiva em homenagem à Museum Week de 2020. Quer outras opções de museus para visitar nas suas viagens? Então veja sobre quais museus os outros participantes escreveram!

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40 Comentários

  • Lulu Freitas

    Que interessante seu post sobre a cultura Inca nesses dois museus da América do Sul. Gostei muito como você descreveu elementos culturais, como o hábito de sacrifício de crianças e o conceito de sua pureza para ligação com os deuses. Sem dúvida um cultura muito diferente da atual mas não menos fascinante.

    • barbaracortat

      Hoje seria inaceitável, mas antigamente eles não dispunham do conhecimento que temos hoje né? Mesmo assim, como você disse, não tornam esses rituais menos fascinantes!

  • Cecilia

    Fiquei super curiosa para ver de perto essas múmias. A cultura inca é muito rica. Bom saber que temos esses dois museus para conhecer mais sobre ela. Adorei o post, Bárbara. Beijos

  • Andrea

    Lendo o post fiquei pensando como uma cultura pode ser assustadora e ao mesmo tempo fascinante. E o quanto a preservação destes corpos jovens auxiliaram para descobrir mais da cultura Inca.

  • Deyse Marinho de Abreu

    Que texto incrível, cheio de informações históricas e curiosas! Muito interessante os resultados dos testes nas múmias. Eu adoraria conhecer ambos museus e aprender mais! Amamos museus de arqueologia e minha filha está na fase “de amar múmias e assuntos semelhantes”. Será uma delícia visitar esses equipamentos culturais!

  • Polliana Ribeiro

    A cultura inca é intrigante. Quando viajamos aqui pela América do Sul, fico enchendo meu marido de perguntas, já que ele é historiador. Vou colocar esses dois museus indicados na minha listinha.

  • Sil Mendes

    Muito bacana e instrutivo esse seu post sobre a cultura Inca, umas das culturas interessantes da nossa América do Sul. Aprendi um pouco mais e fiquei com vontade de visitar esses dois museus. Impressionante como existem e existiram culturas diferentes por esse mundão .

  • Adriana Rodrigues

    Incrível esta cultura, ótima descrição museus maravilhosos!!!
    Eu me encantei pelo pouco que vi e ouvi na passagem pelo Peru. Quero voltar e conhecer mais!

  • Cintia Grininger

    A cultura inca é mesmo muito rica, e acho uma pena que muita coisa se perdeu com a colonização – assim como com outros povos nativos. Fiquei imaginando o choque de culturas quando os espanhóis se depararam com esses rituais, que são meio mórbidos mesmo para nossa cultura. Achei os museus super interessantes, mas não sei se teria coragem de ver as múmias…

    • barbaracortat

      Acho que até hoje temos esse problema de não aceitar as diferenças e diferentes culturas. Acabamos perdendo muito da nossa história, que faz parte do que somos hoje.

  • Angela Martins

    Eu não sabia da existência desses museus. Achei super interessante. Tenho muita vontade de conhecer a cultura inca e visitar Machu Picchu. Depois de ler esse post já vou incluir na minha lista! Adorei

  • Danielle

    Assustador em pensar a quantidade de rutuais que eram feitos antigamente. Crianças inocentes sendo sacrificadas em prol da purificaçao do povo. Graças a Deus que a humanidade evolui ao ponto de pararem com isso. Será que ainda acontece hoje em dia?

    • barbaracortat

      Esse ritual não eram muito frequentes, só ocorriam em situações especiais. Hoje em dia podem não existir esse tipo de ritual, mas o machismo, homofobia, xenofobia fazem muito mais vítimas e por motivos fúteis.

    • Tábata Cristina

      Amei este post. Você nos trouxe informações muito ricas e foi uma excelente contadora de histórias. Fiquei com muita vontade de conhecer os dois museus. Parabéns pelo post!

  • Itamar Japa

    Eu adoro a cultura andina! Infelizmente não conheci nenhum destes 2 museus, mas através de seu post deu pra ter um gostinho de cada um deles! adorei o post!

  • GISELE PROSDOCIMI

    Quantos museus interessantes temos espalhados pelo mundo, não é, Bárbara? Interessante esta sua seleção aqui, fiquei perplexa com as histórias das criancinhas oferecidas para morrer, é de arrepiar. Beijos.

    • barbaracortat

      Era algo cultural e de muito orgulho para as famílias escolhidas. Lógico que hoje em dia não seria aceito de forma alguma, mesmo em nome da religião e cultura. Mesmo assim tantas atrocidades são cometidas em nome da religião…

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